Muito mais pela saúde bucal

Muito mais pela saúde bucal

Por: Vanessa Navarro
 
O século 19 trouxe grandes e agradáveis surpresas para a área da saúde. Foi neste século que aconteceu a ascensão da Medicina Científica, a nova ciência das células, a tão famosa citologia. Também no século 19, mais precisamente no ano de 1842, Crawford Williamson Long descobriu o poder anestésico do éter, o que proporcionou cirurgias indolores e bem-sucedidas. Ainda no mesmo espaço de tempo, a vacina contra a raiva – doença de registro mais antigo – foi testada e aprovada.
 
Outra importante surpresa para a Medicina e, num futuro próximo, para a Odontologia, foi o primeiro transplante de osso homólogo, realizado em 1878, pelo cirurgião William MacEwen.
 
Nessa época, o tratamento das osteomielites era realizado por ressecções cirúrgicas dos segmentos infectados, haja vista a indisponibilidade de antibióticos. Diante das evidências de bons resultados, o número de transplantes começou a expandir nos próximos 90 anos. Na Alemanha, outro cirurgião, Erich Lexer, passou a tratar portadores de osteomielites e artrites sépticas com segmentos ósseos obtidos de amputados. 
 
“Na época, a taxa de sucesso era de 50%. Com o advento dos antibióticos na década de 1950, o tratamento de infecções e osteomielites começaram a mudar, tornando-se um cuidado mais medicamentoso e, desta forma, os transplantes passaram a ser indicados para ressecções tumorais. Na década de 1970, o Dr. Mankin, da Universidade da Flórida, apresentou uma série de bons resultados em 75% em pacientes tumorais, e os transplantes começaram a ganhar mais adeptos”, conta o Dr. Luiz Augusto Ubirajara Santos, implantodontista e responsável técnico pelo Banco de Tecidos Musculoesqueléticos do Instituto de Ortopedia e Traumatologia, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
 
Segundo o implantodontista, ao longo dos anos, o maior impeditivo para o aumento da demanda era a disponibilidade de tecidos e doadores, pois não havia uma regulamentação para este tipo de atividade e, muito menos, bancos de ossos estruturados. O acesso começou a mudar com a criação do primeiro Banco de Tecidos no Estado de Bethesda, Maryland, nos Estados Unidos: o Navy Tissue Bank, com a direção do Dr. George Hyatt. Este serviço foi pioneiro em organizar um sistema de busca e processamento de tecidos, dentro de um padrão aceitável de qualidade. “Um grande salto no controle de qualidade dentro do banco ocorreu na década de 1980, com o advento da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), a qual levantou discussões sobre a segurança do uso clínico dos aloenxertos. O risco biológico de transmissão de doenças entre doadores e receptores de tecidos foi o tema de maior relevância e importância no período”, explica.
 
Na época, todos os bancos existentes foram intimados por órgãos reguladores de saúde pública internacional, entre eles o Food and Drug Administration – FDA, a proporcionar um rigoroso controle de segurança. Os resultados foram positivos, houve uma padronização dos processos internos dos bancos com respectiva elaboração de ‘Standards’ pelas principais Associações de Bancos de Tecidos mundiais (Associação Americana de Bancos de Tecidos – AATB e Associação Europeia de Bancos de Tecidos – EATB), o que contribuiu para o ganho de qualidade dos tecidos disponibilizados por estes serviços.
 
“Considerando os resultados satisfatórios ao uso de aloenxertos captados de multidoadores de órgãos e tecidos, além de pesquisas evidenciando revascularização e neoformação óssea, um número cada vez maior de cirurgiões-ortopédicos começou, então, a optar pelo seu uso”, enfatiza o Dr. Luiz Augusto Ubirajara Santos.
Esta tendência, aliada ao número crescente de pacientes portadores de perdas ósseas que procuram os serviços especializados de Ortopedia, impulsionaram a criação de alguns bancos de tecidos no Brasil. O instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas foi pioneiro nestes tratamentos. “Temos trabalhos publicados, desde 1939, pelo renomado professor Dr. Godoy Moreira”, comemora orgulhoso o implantodontista.
 
No Brasil, a normatização dos Bancos de Tecidos Musculoesqueléticos (BTMEs) é vinculada à Lei Federal nº 9434, regulamentada pelo Decreto nº 2268, qual disciplina “a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano e sua aplicação em transplantes, enxertos ou outra finalidade terapêutica”.
 
Em 2003, com o intuito de instituir no país um maior controle dos procedimentos realizados pelos Bancos de Tecidos, os mesmos passaram a ser controlados pela Gerência-Geral de Sangue, outros Tecidos, Células e Órgãos – GGSTO da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, que focam suas atividades de vigilância sanitária no controle de qualidade, rastreabilidade, avaliação de riscos e de efeitos adversos envolvendo os transplantes de tecidos no país.
 
 
Banco de ossos e a Odontologia
Em Odontologia, também houve uma busca, ao longo dos anos, por biomateriais para serem utilizados na reposição de perdas ósseas mandibulares e maxilares. O transplante autólogo de porções ósseas obtidas de regiões extraorais e intraorais foi difundido com o passar do tempo, porém, de forma similar ao que ocorreu na área médica, as desvantagens relacionadas à morbidade do paciente doador, custos complementares e limitação da quantidade e qualidade de tecido obtido motivaram dentistas e pacientes a aderirem ao uso de biomateriais, inclusive de aloenxertos disponibilizados por bancos.
 
“No Brasil, os transplantes ósseos, oficializados pelo Sistema Nacional de Transplantes na Odontologia, foram iniciados somente em 2005, muito embora eles já fossem realizados de forma experimental no país, corroborando para a oficialização de sua prática. Após consenso da necessidade de seu uso entre representantes de Bancos de Tecidos, Conselho Federal de Odontologia e o próprio Ministério da Saúde, foram definidos os critérios para solicitação de aloenxertos junto aos bancos existentes, devendo o profissional ser especialista nas áreas de Implantodontia, Periodontia ou Bucomaxilofacial e, sobretudo, que este profissional tenha consciência da necessidade de rastreabilidade e biossegurança inerente ao seu uso” explica o Dr. Luiz Augusto.
 
Uma vez normatizado, essas atividades foram incorporadas por alguns bancos existentes, que passaram, então, a implementar os programas de processamento e distribuição de tecidos ósseos com finalidade odontológica. Neste programa, é imperativo o registro de todo processo com foco no controle sanitário, de efeitos adversos e rastreabilidade, desde a solicitação até a realização do transplante. Para tal, são utilizados formulários específicos, como o Termo de Solicitação, Termo de Não Conformidade, etc. “Estando a Odontologia cerceada ao uso de aloenxertos por anos e anos, uma vez autorizado, seu uso ocorre de forma abrupta e com grande aceitabilidade pela comunidade odontológica”, expõe.
 
Sobre a definição de quais profissionais podem realizar tais procedimentos junto ao banco de ossos, o Dr. Luiz explica que, apesar de contarmos com aproximadamente 250 mil profissionais de saúde bucal, a definição das áreas ou especialidades que possuem acesso aos bancos de osso foi do próprio Conselho Federal de Odontologia – CFO.
 
“Hoje, contabilizamos quase 3.000 especialistas cadastrados para o uso de aloenxertos. Considerando a técnica em si, o profissional que estiver capacitado em enxertias poderia utilizar aloenxertos, do ponto de vista técnico. Cada qual que responda por seus atos de negligência, imperícia e imprudência, de acordo com o exercício legal da profissão.  Mas, a natureza deste tecido, remete-nos a legislação de transplantes de órgãos, a qual possui cuidados específicos, sobretudo, na rastreabilidade e biovigilância. Ainda não alcançamos um patamar de rastreabilidade ao ponto de saber o que realmente ocorre dentro dos consultórios. Ao contrário do ambiente hospitalar, onde as informações são sempre registradas em prontuário, notificadas e passam por crivos de uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) e uma gerência de risco, nos consultórios ainda não percebemos uma participação mais massiva da classe odontológica, sobretudo, no envio de informações aos bancos acerca do transplante em si, tais como erros, acidentes, reações adversas, etc. Temos que avançar nisso, focando na prevenção de recorrências. Quando a implementação de um sistema de biovigilância estiver mais avançada, aí sim, poderemos pensar em tornar mais abrangente”, justifica.
 
Atualmente, o tratamento odontológico com o uso do banco de ossos é iniciado pelo cadastramento do dentista junto ao Sistema Nacional de Transplantes. Para isso, o profissional deve ter seu diploma de especialista registrado no CFO e solicitar este credenciamento junto a algum banco ou secretaria da saúde. O procedimento leva em torno de 30 dias. Depois dos trâmites legais, basta solicitar o tecido para algum banco autorizado no Brasil.
 
Vale lembrar que não é permitida a estocagem por tempo prolongado – fora do curto prazo informado e validado pelo banco – de tecidos em consultórios, o que configura infração sanitária. Estocagem prolongada é de competência apenas dos bancos. Cada tecido sai do banco já com o receptor definido, fato imprescindível para rastreabilidade. “Também não é permitido o uso de sobras, ou seja, é de uso único, para um único paciente. Tudo é muito controlado. Basta que o colega dentista apenas siga as orientações dos bancos”, enfatiza o Dr. Luiz.
 
Hoje, as matrizes alógenas são empregadas sempre da existência de uma falha óssea e da necessidade de enxertias em regiões onde se pretende reabilitar com implantes ou simplesmente recuperá-la de um dano.
 
“O interessante é que pela possibilidade do banco em manusear estes tecidos com segurança, pode-se lançar mão de pré-moldagens do enxerto, a partir prototipagens personalizadas para cada paciente. É um planejamento reverso, ou seja, já moldamos os tecidos antes mesmo da abordagem cirúrgica. Com isso, aperfeiçoa-se o tempo cirúrgico do colega, com menores riscos de contaminação e morbidade pós-operatória”.
 
 
Doadores e receptores
A seleção de doadores de ossos é muito rigorosa, e grande parte dos potenciais doadores falecidos é recusada. “Isso leva a um número muito baixo de doações efetivas, que, aqui no Hospital das Clínicas, o maior hospital público da América Latina, desdobra na formação de filas de espera”, ressalta o implantodontia, que ainda explica que a demanda ortopédica é para tecidos epifisários, e na Odontologia, diafisários e metafisários. Assim, uma demanda não interfere na outra. “Lembro que antes do uso odontológico, desprezávamos diáfises por falta de uso e, hoje, elas são fragmentadas em blocos e trituradas, e possuem grande aplicabilidade odontológica”, justifica o também membro da Câmara Técnica de Tecidos do Sistema Nacional de Transplantes. 
 
As equipes de captação dos Bancos de Tecidos credenciados pelo Sistema Nacional de Transplantes – SNT recebem notificações de potenciais doadores das Centrais de Notificação e Captação de Órgãos e Tecidos – CNCDO, logisticamente espalhadas pelo País. Além disso, a legislação permite, também, a criação de equipes satélites em localidades com ausência de equipes de retirada.
 
A obtenção dos tecidos musculoesqueléticos tem como fonte principal os doadores falecidos por morte encefálica. As notificações para as equipes captadoras de órgãos e tecidos são realizadas após a execução de uma série de procedimentos e exames, que visam, além da comprovação da morte encefálica, o consentimento familiar da doação. 
 
O implantodontista explica que para os doadores de tecidos musculoesqueléticos, a seleção segue um rigoroso controle com investigação sorológica para antígeno e anticorpo HIV, Hepatites A, B e C, HTLV-1 e 2, Sífilis, Chagas, Toxoplasmose e Citomegalovirus, além dos testes de última geração na evidenciação de DNA (Nucleic Acid Amplification – NAT) para HIV e Hepatite B e C, esfregaço de medula de esterno e amostra de crista ilíaca, ambos para investigação histopatológica. 
 
“No Banco do Hospital das Clínicas, em São Paulo, existe o seguimento de um protocolo de avaliação do doador registrado em um impresso próprio (Termo de Retirada). Excluem-se doadores com patologias, como osteoporose, osteonecrose, artrite reumatoide, lúpus eritematoso, neoplasias, faixa etária que comprometa a característica dos tecidos, entre outros critérios. Tudo é minuciosamente avaliado. Investigamos com muito rigor o potencial doador, à procura de evidências que possam colocar o futuro receptor em risco. Assim, usuários de drogas ilícitas, portadores de infecções sistêmicas, entre muitos outros critérios são avaliados caso a caso. Esses critérios estão muito bem descritos nas legislações, e têm como base ‘Standards’ de consenso internacional”.
 
Os tecidos captados são os ossos longos (fêmures, tíbias, fíbulas, úmeros) e curtos (tálus e calcâneos). Cristas Ilíacas, acetábulos, tendões fazem parte desta lista. A captação ocorre em salas de cirurgias com toda paramentação e técnica asséptica. “O importante é ressaltar que ao contrário do que se pensa, não deformamos o corpo do doador. Tudo é reconstruído com próteses especificamente projetadas para isso, e o corpo é entregue a família sem quaisquer deformidades”.
 
O paciente que optar em se submeter às técnicas de transplantes de ossos deve assinar o termo de consentimento para o transplante. O risco, segundo a Associação Americana de Bancos de Tecido – (AATB), é mínimo, em média de 1:1.6 milhões de transplantes (para HIV), ou seja, ínfimo. Para tecidos desmineralizados e irradiados o risco por HIV é menor ainda, 1:2,8 bilhões. “É sempre muito importante que o paciente questione, participe e que também entre em contato com a equipe do banco para buscar informações. Tudo deve ser muito claro e objetivo”, esclarece o Dr. Luiz Augusto.
 
Primeiramente, o paciente deve ter conhecimento se o banco está devidamente autorizado pelo SNT e pela Vigilância Sanitária. O paciente deve ser esclarecido e participar da decisão ao uso do aloenxerto, suas vantagens e desvantagens. Tudo é registrado em um formulário específico, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, fornecido pelos bancos. É necessário que exista o devido respeito às orientações confiadas, sobretudo, nos cuidados necessários no transporte, no uso e nas informações pós-transplante.
 
Sobre o osso transplantado e ativação da regeneração óssea, o implantodontista relata que, nos últimos anos, tem pesquisado arduamente sobre o comportamento das matrizes junto ao leito receptor. “Não tenho dúvidas do potencial destas matrizes de servirem como scaffolds durante a ostecondução de células relacionadas à osseointegração. Observo remodelações exuberantes, com deposição de matriz osteoide e remineralizarão. Entretanto, devem ser asseguradas as condições para tal, e isso depende – e muito – da técnica de enxertia, condições de assepsia, comportamento do paciente, inerente a qualquer outro biomaterial”.
 
Infelizmente, ainda existe certo o preconceito e/ou falta de conhecimentos dos profissionais da Odontologia em relação à utilização do banco de ossos. “Ainda estamos em uma fase de curva de aprendizado ao uso de matrizes alógenas. As pesquisas em nosso meio, agora, começam a aparecer, mas ainda há muito que se avançar. Além disso, o Ministério da Saúde e a ANVISA estão compilando dados epidemiológicos dos bancos com o intuito de se divulgar e estabelecer uma biovigilância, a exemplo do que se fez na área de hemocomponentes e medicamentos. Porém, a classe odontológica tem seu papel neste processo. Como toda área em desenvolvimento, leva a dúvidas, falta de informações, mas acredito que, com o tempo, isso vai se equilibrando. Novos métodos de processamentos, como a desmineralização, liofilização, irradiação já fazem parte dos protocolos de alguns bancos, que têm como objetivo distribuírem tecidos com altíssimo grau de qualidade, o que, claro, vai desdobrar na previsibilidade de resultados nos tratamentos”, comenta o membro da Câmara Técnica de Tecidos do Sistema Nacional de Transplantes.
 
 
Situação atual
Hoje, o Brasil conta com seis bancos de ossos ou de tecidos musculoesqueléticos autorizados: dois na capital do Estado de São Paulo; dois em cidades do interior de São Paulo, Marília e Ribeirão Preto; um no Estado do Rio de Janeiro; e o último em Passo Fundo, cidade do Rio Grande do Sul.
 
Segundo informações do Dr. Luiz Augusto, desde que o Sistema Nacional de Transplantes passou a cadastrar dentistas transplantadores e autorizou a distribuição pelos bancos, houve um ganho no controle de qualidade e processamento de tecidos voltados ao uso odontológico. Os bancos passaram a processar tecidos em consonância com as necessidades clínicas do cirurgião-dentista. Em pouco tempo, seu uso foi disseminado, e vem crescendo a cada ano. No ano passado, foram mais de 21.000 transplantes odontológicos no Brasil. “Assim, os bancos vêm fazendo seu dever de casa. Cabe agora aos colegas fazerem o seu, de modo a preservar esse direito conquistado pela classe. Faço aqui um apelo para evitarem desperdícios, cumprirem rigorosamente com os protocolos dos bancos, comprometendo-se para que o período entre transporte e uso seja rigorosamente cumprido, zelando pela manutenção da qualidade do tecido sob sua responsabilidade e contribuindo com os bancos no envio de informações e de efeitos adversos, caso ocorram. Desta forma, não tenho dúvida que a Odontologia estará contribuindo – e muito – para o crescimento, tanto assistencial como científico, na área de transplantes de tecidos no Brasil”, finaliza.
 
 
Fonte: Odontomagazine – www.odontomagazine.com.br

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